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do orgulho.
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do orgulho.

ser-se queer como afronta nacional.
s/título (2022) — Miguel De

Já falamos aqui na questão da ocupação de espaços. Ocupar é usar um espaço contra a vontade do seu dono (legítimo ou não). O espaço pode ser físico ou metafórico. Ou ambos. Um espaço metafórico é o ar que respiramos, a possibilidade da existência. Ser-se num ar hostil é ocupá-lo. A própria insistência no pensamento do opressor é também uma ocupação.

Encontra-se, no rol de publicações que invadem as redes sociais no início deste mês de Junho, a frase “the first Pride was a riot”, que em português significa que a primeira marcha do orgulho LGBTQ foi uma revolta. Foi verdadeiramente uma ocupação, não necessariamente de um espaço físico, mas de um fôlego. Acontece no Stonewall Inn, mas a revolta não é uma ocupação desse espaço, antes um recuperar do poder tantas vezes apreendido naquele espaço pela polícia. É uma revolta contra a polícia, contra a lei de então, contra uma moralidade social estabelecida. A ocupação é, portanto, ontológica, mais do que física. A maioria das ocupações queer são ressignificações morais e sociais. Essa ocupação, e a contínua insistência em mantê-la, é o que permite que a moralidade se altere, progredindo a lei, progredindo a própria sociedade. Nessa progressão, pela permanência, a ocupação desvanece, porque o ocupante passa a fazer parte da propriedade do espaço. Ou faz?

The first Pride was a riot. Aquilo a que chamamos de primeiro Pride acontece em 1969, nos Estados Unidos da América. Nos anos seguintes, um pouco por todo o mundo, as marchas dos direitos LGBTQ, ou queer, como lhe vou sintetizar, apareceram que nem cogumelos, inspirados e inflados pela energia renovadora que emanava de Nova Iorque, nessa altura já um dos centros do mundo, se não mesmo o centro cultural do ocidente. De Nova Iorque vinha o modelo que foi então replicado pelos países do Velho Continente, e, de uma forma muito mais amedrontada, por países do Sul Global. Hoje, é um dado adquirido. Junho é o mês do Pride. Por todo o mundo, por todas as culturas, neste mês, desfilam e protestam milhões de pessoas, reclamando para si o espaço ontológico que merecem, nem menos, nem mais, direitos iguais.

Chama-se Pride, chama-se Orgulho. Durante muito tempo, na minha adolescência, não entendia porque se usava este termo. Orgulho em quê, se não posso alterar o que sou? Posso ter orgulho em ter olhos castanhos? Pode alguém ter orgulho em ter 1,80m? É um facto inalterável do seu ser, não é uma conquista, não é um feito. Só é. Só mais tarde percebi que este orgulho é essencialmente interior, e não uma manifestação externa. O orgulho não é em ser-se queer, mas em ultrapassar a vergonha, a ameaça de si, contra todas as expectativas. O orgulho que se sente em ser queer, não é de ser queer, mas de se vencer a violência a que se foi sujeito, e que também se impingiu a si próprio, e hoje viver a sua sexualidade sem preconceito.

Interessa-me pensar o Pride no contexto português. Acho sobretudo fascinante o quanto as marcas, as empresas, no fundo, o capitalismo, em Portugal, ainda não se apropriou em força das marchas. Por esse mundo fora, as maiores marchas do orgulho queer foram tomadas de assalto pelo capital, fazendo desfilar logotipos e mensagens vazias ao lado dos corpos orgulhosos, um efectivar da assimilação tanto desejada por certos grupos. Se uma marcha reivindicativa é totalmente apoiada e suportada pelo capital, será que reivindica alguma coisa? Ou apenas repete uma ideia de reivindicação como forma de ilustrar uma suposta opressão que, apesar de existir muito concretamente, não passa apenas, neste caso, de uma ilustração de um obstáculo já ultrapassado? Outras discussões.

A verdade é que em Portugal, tirando algumas tentativas inertes de patrocinar marchas, o capital nunca se envolveu verdadeiramente na esfera social queer. Não por falta de oportunidades: afinal, nunca houve tantas marchas no nosso país como hoje (há pelo menos 22 em 2024), há festas queer quase todos os fins-de-semana, há bares e discotecas, há eventos dedicados, arraiais, associações, e por aí fora. A sua falta de envolvimento não tem tanto a ver com a resistência dos grupos associativos que organizam estas coisas. Não tem a ver com uma persistência na autenticidade comunitária da organização queer. Simplesmente, o capital não se importa. Não quer saber. Utiliza o estilo queer dentro de determinadas situações, mas não se envolve. E não o faz, porque não existe retorno financeiro. A agulha do lucro não se mexe quando uma marca acompanha a marcha do orgulho em Lisboa. Porquê? É uma questão de atraso civilizacional? De homofobia proeminente?

Diria que sim, e que sim. Mas principalmente, diria que ambas são apenas uma parte pequena da razão. Primeiro, porque o tal atraso que Portugal teima em manter é transversal a tudo, e isso não dissuadiu o capital de contaminar tudo o resto; e segundo, porque a presença visível de pessoas queer em toda a esfera pública é hoje muito maior do que era há duas décadas, mas nem assim o capital viu vantagem em associar-se. Proponho uma terceira razão, que considero muito mais relevante, pela especificidade cultural que representa: ser-se queer, visivelmente queer, seja em que situação for, é essencialmente anti-português. Pausa dramática.

Anti-português não significa contra os portugueses. Quer dizer que ser-se visivelmente queer é uma afronta à consciência nacional, ao mito da identidade portuguesa. E é culturalmente específico, porque não tem a ver com ódio às minorias (embora exista), mas sim, diria, recusa da individualidade e da visibilidade, que é uma característica que marca o inconsciente português. Mas o que é isso da consciência nacional? O que é ser-se português? Vou tentar não alongar-me muito, até porque isto é bem mais complexo do que as minhas palavras podem escrever e do quão longa esta carta pode ser.

Miguel Real, na sua “Nova Teoria do Sebastianismo”, traça uma genealogia do mito d’O Encoberto, do Quinto Império, do retorno de D. Sebastião. Essencialmente uma invenção colectiva, uma alucinação, como ele lhe chama, fruto da derrota dos portugueses em Alcácer Quibir e do desaparecimento do jovem rei, que provocou uma crise dinástica e que levou à perda da independência para Espanha, o grande concorrente de Portugal nas expansões marítimas, este mito assegura que, numa manhã de nevoeiro, D. Sebastião voltará. O nevoeiro, o retorno, tudo isto é simbólico. O desaparecimento do rei, que não tinha irmãos nem filhos, torna Portugal órfão de regente, órfão do pai simbólico. Sem pai, a nação volta-se à deriva, e ano após ano, perde relevância no panorama internacional, até à fatalidade última da perda da sua unidade nacional, ao tornar-se parte do reino espanhol. Sem rei português, sem império autónomo, sem elite política forte, sem independência e submissos a uma potência estrangeira, a identidade nacional desaba.1

Perante tal trauma, o “nevoeiro”, a consciência colectiva alucina um contrapeso estabilizante, a possibilidade da resolução, a miragem uns passos à frente do regresso daquele que, pelo seu desaparecimento, espoletou o descalabro. D. Sebastião voltaria então, qual força divina, para recolocar Portugal no alto das suas glórias passadas, como nação eleita por Deus. Make Portugal great again. O mito messiânico só é possível pela indefinição do que realmente aconteceu com D. Sebastião em Alcácer Quibir, porque até hoje, o seu corpo nunca foi encontrado. Ou foi, e os seus restos mortais estão nos Jerónimos, mas a dúvida se são-nos mesmo criou-se e manteve-se, até um ponto em que já não interessa se é ou não é. O mito está criado.

Este é um trauma colectivo relevante, porque aconteceu há quase 500 anos e não há um português que não o conheça. O trauma da pequenez, da irrelevância, da incapacidade da elite política, um trauma da morte do pai, do abandono. Um trauma que se resolve com a salvação, com a chegada daquele que conduzirá a nação ao paraíso.

Salazar ofereceu-se como candidato. Cerca de 350 anos depois da morte de D. Sebastião, o ditador revela-se, “descobre-se”, e encaminha Portugal e os portugueses na ordem certa. No seu estudo dos discursos de Salazar, José Gil afirma que a retórica que o ditador utiliza na sua oratória é sobretudo uma de invisibilidade. Afirmando-se como o salvador de Portugal e o restaurador da moralidade perdida, Salazar substitui-se a D. Sebastião, alimentando-se do mito sebastianista para criar o mito salazarista. Apropriando-se da lógica da paixão de Cristo — a lógica messiânica da morte e ressuscitação, a mesma de D. Sebastião — o ditador pede aos portugueses que desapareçam, que se invisibilizem, morram sem de facto morrer, para ressuscitarem nas glórias de outrora. Gil reforça a necessidade da existência deste acto último da morte, essencial para a transição para o renascimento: é necessário morrer para renascer — “desordem, negação da desordem através do sacrifício e do sofrimento, redenção e renascimento, nova ordem nacional”.2

Portanto, Portugal encontra-se num caos e para resolvê-lo, é necessário um sacrifício, é necessário sofrer. Só assim a Nação pode renascer forte, imponente, a grande potência que contém dentro de si. Ao contrário de outros regimes fascistas, em Salazar, o sacrifício não significa morte física, mas antes identitária. Pretende-se a anulação da identidade individual de cada português, em prol da identidade nacional una e indivisível. O sacrifício é “um comportamento permanente de privação, de restrição”.3 José Gil continua, dizendo que se propõe aos portugueses “que restrinjam progressivamente as suas ambições, as suas aspirações, os seus desejos”. 4

A grande ideia do autoritarismo português foi não levar a morte sacrificial até ao fim, mantendo os indivíduos num estado de semi-invisibilidade. Já que a invisibilidade substitui a morte simbólica, basta prescindir de agir (de se destacar), de aparecer, de se afirmar individualmente, para se tornar invisível; por outro lado, conservar este estado pode suprir a acção, a afirmação de si próprio, pois implica um esforço e um domínio de si, em suma, um “sacrifício”.5

Esta é a grande moral salazarista, e também o seu mito: a moderação, o bom senso, o meio termo, a modéstia. Toda a acção diferenciadora, distinta, ostensiva é negada em absoluto, pelo bem maior da salvação da Nação. O mito devém da própria adesão a esta moral pelo próprio Salazar. O ditador não aparece com frequência, os seus discursos não são incendiários, nem ditos de uma forma exagerada. Toda a sua acção é comedida, todas as suas palavras são moderadas: Salazar mostra-se como modelo do cidadão exemplar, do sacrifício, da moderação. Na sua construção lenta do renascimento, tão lenta que nunca acontece, a Nação conserva no tempo a sua própria invisibilidade, que passa a ser a moral do quotidiano, de todos os dias. Nesta insistência permanente, cria-se o hábito, e com ele a expectativa, de promessa de que o sacrifício, portanto a moderação, a anulação da individualidade, valerá a pena, porque é ele que levará a Nação à glória prometida. “O sacrifício é “sobretudo moral”, como diz Salazar, o que significa o apagamento das paixões egoístas, em proveito do interesse nacional”.6

O sucesso desta retórica, desta moral, deve-se muito à predisposição portuguesa pela espera, pela vinda do messias, fruto do trauma sebastianista. Ao encaixar-se na moldura messiânica, Salazar assume o papel do salvador. Os portugueses confiam e assimilam a mensagem: Salazar demonstra-se como o contrário do caos político que se viveu na Primeira República, prometendo estabilidade e futuro, se (e só se) o ouvirem e seguirem a sua palavra. Com o 25 de Abril de 1974, Portugal sofre um novo trauma, ao desfazer-se do Estado Novo e entrando num tumultuoso par de anos de incertezas e indefinições. A suposta estabilidade é rompida e, a partir daí, no processo democrático, a procura pela mesma é constantemente usada como slogan propagandístico nas campanhas eleitorais.

A democracia não é um regime de estabilidade plena e constante. É um processo de construção permanente que precisa da população para funcionar. Aos cidadãos dos países democráticos é exigida participação activa, e não passividade e submissão a um messias que há-de vir. A consciência nacional que Salazar solidificou no inconsciente de cada português, permitido pelo trauma histórico do abalo sísmico da morte de D. Sebastião, é a de que a individualidade e a visibilidade são inimigas da salvação. Pelo contrário, é a consciência individual e a noção de visibilidade no colectivo que permite que a democracia funcione. Este constante atrito entre a democracia no nosso país e a consciência identitária nacional, faz com que se espere da elite política, encabeçada pelo Primeiro Ministro, o mesmo resultado de um messias salvador de todos os problemas, que não necessite da actuação cívica da população, que é uma expectativa não só irrealista como impossível. É neste impasse ontológico que surgem novos candidatos a salvadores nacionais, que retomam bafientas retóricas das glórias do passado e da possibilidade do renascimento. A idealização do renascimento pressupõe um estado actual de caos, que, mais à esquerda ou mais à direita, e por razões distintas, é na verdade aquilo que arrepia na inconsciência de cada português.

E o que é este caos? O caos é instabilidade. Política, económica, social, individual. Na impossibilidade de estabilidade e segurança, procuram-se bodes expiatórios que justifiquem o estado em que nos encontramos e a necessidade de correcção. Da mesma forma que o Padre António Vieira teoriza que a morte de D. Sebastião e o consequente desabamento da monarquia e independência portuguesas são um castigo divino pelo império português ter sido construído em cima de escravatura e morticínios, e não para a difusão do cristianismo e conversão de almas,7 subjaz na consciência dos portugueses uma procura pelas razões pela qual o caos impera. Este estado de inquietude e instabilidade é o gatilho do trauma sebastianista, que provoca uma reacção imediata e irreflectida de reparação do dano. O abandono dos valores tradicionais, a corrupção moral dos políticos, a insegurança causada pela imigração descontrolada, são frequentemente clamados como exemplos da perda da identidade nacional, do trabalho feito em prol da salvação.

Os valores tradicionais são, como vimos, a invisibilidade e o sacrifício identitário. Os valores tradicionais são o apagamento e a menorização de si tendo em vista o renascimento que nunca chega. Os valores tradicionais são a recusa absoluta da identidade individual.

O orgulho, ou o Pride, como se queira chamar, é o completo inverso disso. Para ser-se queer, visivelmente queer, é necessária uma sublimação de si. Nesse trabalho, a identidade individual é enaltecida, contra todo o esforço social de a apagar. Gera-se, nesse processo, uma energia autónoma, que reclama por visibilidade. Essa visibilidade será necessariamente uma demonstração de diferença, de distinção, de ostentação, tudo aquilo que é demonizado e negado na moral salazarista. O trabalho mental da pessoa queer consiste em encontrar dentro de si a valorização factual de si mesma. Valorização factual significa a construção ontológica concretizada da sua existência individual, que é a mesma coisa que as crianças fazem quando se apercebem que têm um corpo e que esse corpo lhes pertence. A pessoa queer tem um corpo e esse corpo pertence-lhe, mas não tem identidade, porque essa foi-lhe sempre recusada. A partir do momento que a conquista, forma-se uma unidade dissidente, porque a sua expressão estará para sempre nos antípodas da construção identitária nacional.

É por essa razão, na especificidade portuguesa, que ser-se visivelmente queer (e todas as manifestações públicas que permitem essa visibilidade) é essencialmente anti-português, ou seja, contra a identidade nacional da moral salazarista, que continua a ser a consciência dominante em Portugal. E é precisamente por ser contra a moral estabelecida e ratificada, que não há qualquer dividendo financeiro numa marca associar-se ou envolver-se em qualquer acção visivelmente queer, em Portugal.

Quero ser claro que não desejo que o fenómeno do pinkwashing chegue em força ao nosso país. Interpreto a existência queer como dissidente e antissistema, ou seja, rompendo com a ordem estabelecida e procurando soluções alternativas para problemas familiares. Pessoas de sexualidades ou identidades de género alternativas que procuram a assimilação ou que já se encontram totalmente assimiladas não são pessoas queer, no sentido em que o potencial dissidente foi menorizado ou apagado no processo assimilacionista. Esse processo, como também já disse na carta sobre a ocupação, beneficia de sobremaneira o regime vigente capitalista, contra a expressão individual e plena da pessoa assimilada.

Aquilo que eu desejaria era que a razão pela qual o pinkwashing não vinga no nosso país fosse apenas a resistência teimosa e insistente das associações e comissões organizadoras, e não pelo desinteresse absoluto do capital fruto de uma consciência colectiva identitária baseada na anulação de cada um dos portugueses. Essa consciência castiga o debate, o pensamento crítico, os filósofos e os artistas, castiga as pessoas que saem da norma, o diferente, o novo, a mudança, enquanto premeia discursos messiânicos, cultos de personalidade, incitamentos à inacção, à ordem e à submissão, saudosismos por mitos do passado, num sonho molhado do ditador dos brandos costumes. Salazar morreu, longa vida a Salazar.

Um abraço.
Miguel

música da leitura desta carta: impermanence — max cooper
1

Miguel REAL, 2013, Nova Teoria do Sebastianismo, Publicações Dom Quixote, p. 70

2

José GIL, 1995, Salazar: a Retórica da Invisibilidade, Relógio D’Água Editores, p. 29

3

Ibid., p. 30

4

Ibid., p. 30

5

Ibid., p. 31

6

Ibid., p. 34

7

Miguel REAL, 2013, Nova Teoria do Sebastianismo, Publicações Dom Quixote, p. 71

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